quarta-feira, 13 de maio de 2009

FALA, FILHO DA MÃE!!!

O chiado melancólico da lenha verde colhida de urgência, cozinhando no braseiro vermelho, expandia, em lúgubre cantilena, um liquido brilhoso e borbulhante, num bailado simétrico, brotado bem do centro do pau-roliço. Afago choroso, sangria de fogo inflamante, a noite se perdia em fagulhas pelos ares escuros do céu de estrelas, num contraste cênico de lânguidas mechas esbranquiçadas que inundavam o espaço restrito até onde a visão penetrava.
Boca de inferno!!!
Tudo vigiado atentamente por João Tatu.
Um contraste entre beleza e medo, dor e aconchego, perfurava o bloco de densa escuridão, na noite fria de inverno.
As caieiras eram construídas de forma engenhosa e a ciência dessa engenhosidade pertencia a poucos, muito poucos, dentre os quais João Tatu era mestre. Todos que ali as construíam passaram pelo seu aprendizado.
Pitada de boa prosa; êita sujeito! Bom de conversa, bom de trato. O costume era o seu viver. Nunca se preocupou com casamento. Vivia só.
A fala mansa, o andar era desvairado e sonso. Tinha cravos na planta dos pés. Fazia um vai-e-vem desengonçado, como se equilibrasse no contrapeso do cigarro de palha; um cilindro grosso, feito sabugo de milho, improvisado no fio do fumo, cortado pela lâmina afiadíssima do canivete corneta, macerado na palma da mão e aconchavado na palha de milho, adredemente preparada.
A alcunha Tatu, alcançava a todos da família. Vinha de pai pra filho desde muitas gerações antes. Entanto, era um cognome tão popular, quanto secreto. Toda a família era conhecida como tal, mas só no cochicho e na distância. A origem? Só Deus, pra dizer! O certo é que todos eram Tatu: João, Vicente, Maria, Carmo, Fiinha, até os animais de estimação costumavam ser identificados com o apodo que os donos da casa carregariam até o túmulo.
Maria se casou com João; um outro João, que não era Tatu e tiveram filhos. Um mancebo, o mais velho, Ducarmo, e outros menores, que geralmente são esquecidos, prevalecendo de costume para cada faixa etária, a sua correspondente contemporânea. Não vem ao caso.
As caieiras eram pontuais e envolvia todos os Tatus. Juntavam-se para o ofício ficado de herança do pai; irmãos tios, sobrinhos, todos.
Sistematicamente os invernos eram marcados pelo espetáculo que se repetia e tomava de enlevo todo o pequeno lugarejo de praça única, perdido no bucolismo de um mundo sem fim. No fulgor da madrugada era possível ouvir o chiado do fogo, dos quatro cantos do lugar; o “estralar” das fagulhas, o estouro de um tijolo ou outro, num “troc” surdo, abafado no ventre do monstro de boca vermelha; cheiro de batata doce assada, e não raro a visão tremulante, vista de reflexo ante a cortina de fogo, dos visitantes que se achegavam ao entorno do fogaréu, para filar o café de rapadura que regava a batata doce no correr da noite e espantar o frio.
Fabricava o melhor “tijolinho” da região! Saia ao gosto do freguês; queimado, requeimado, mais ou menos cru, ou cru de tudo, o famoso e popular adobe. Era o momento de evidência dos Tatus; aqueles “quinze minutos”, como costumam dizer...
Ducarmo pertencia já à terceira geração desses dasipodídeos. Criada sob controle rígido da mãe, Maria, nasceu com proficiente dislalia e sequer lembrava a serenidade do tio mais velho, em sua figura quadrada, calça dependurada na cintura roliça, cinto de fivelão dourado, chapéu palhinha desfiado na aba, e o toco de fumo no canto da boca, e que não quis se casar. Enquanto mansa era a fala, no costume do recosto em frente o coreto da praça, papo macio e descontraído, Ducarmo espelhava Maria. Singela descendência dos Tutus, criada de favor em casa de ricos, dotada de uma dignidade incomparável e de trato específico, esperta; a outra face de João, que era manso e lento.
Uma carada de fuinha, a meninada! Corriam feito “porquinho-da- índia”, escondendo-se pelos cantos da casa, quando aliviados da obrigação de varrer o chão e de levar o café do tio, no labor da olaria improvisada num ponto qualquer da barra do córrego que passava por baixo da casa de Maria, e de Ducarmo também.
A dislalia é uma má formação da articulação de fonemas, dos sons da fala. Não é um problema de ordem neurológica, mas de ordem funcional, referente à forma como estes sons são emitidos. Este som alterado pode se manifestar de diversas formas, havendo distorções, sons muito próximos, mas diferentes do real; omissão, ato em que se deixa de pronunciar algum fonema da palavra ou mesmo a transposição na ordem de apresentação dos fonemas, ou sua substituição por outro de semelhança aparente. Estava ai o mote de risíveis brincadeiras por parte da molecada na rua, e que despertava todo um vicio funcional de fala, marca registrada de toda a família Tatu, sem prejuízo do furor:
- Ô Dutarmo, vem tumê tumida tentada, ta mãe tentou... – gritava o filho da mãe.
- Vai tomá no tu!!! – respondia a coitada, espevitava e com furor.
Queria ver o filho da mãe gritar: TATUUU!!!
Dava morte! Isso ninguém tinha coragem de gritar..
Enquanto isso, a caieira se desmanchava, levando ao fim um dantesco espetáculo, que voltaria no próximo inverno, embora continuasse a dislalia.

(Publicado em “Fala, filho da mãe!!!”)

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