sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A CASA DE ANIDES

Final de verão. Nós ainda brincávamos no quintal da casa do Otto, sem problemas. As raízes suspensas do mangueiral avançavam sobre as águas do pequeno riacho que preguiçosamente, serpenteava por ali. Serviam como ancoradouro de nossos iates, rampa de decolagem de imaginários supersônicos, palanque para discursos inflamados contra nossa professora de inglês, e pra muitas outras coisas. Logo em breve seria transformada em sede do ginásio. A Casa do Otto não era muito diferente dos outros casarões que rodeavam a praça – e tinha demarcado o mesmo destino que eles; a demolição -, marcada no seu ponto central com um poste de rede elétrica; mas era um mundo fantasioso, onírico, bem mais consistente de que todos os outros casarões ou quintais que conhecíamos.

Foi de lá do poste que demarcava a praça, que o Daniel acertou uma pedrada bem na “fonte” da Clemilda. Diz que pancada na “fonte”, é coisa perigosa, perigoso de morrer. A bitela caiu esborrachada na escadaria da Igreja! Tava escuro e todo mundo aposta que o “acerto” da pedrada foi uma coincidência.

Antes que o ginásio mudasse para a Casa do Otto, seria necessária a contratação de um Chefe de Disciplina. O Daniel era muito atrevido, não restava dúvida. No momento em que a Clemilda o chamou de “carijó”, dentro da sala de aula, ele voou nela feito um garnizé eletrizado. Com o corpo cheio de sardas, não era incomum que o chamassem dos mais variados apelidos: “banana ouro”, “sabão mossoró”, “angolinha”, mas queria tirá-lo do sério, chamasse-o de “carijó” ou, cacarejasse pro lado dele como tal. Foi bem isso que ocorreu. Prevalecendo-se de seu tamanho, a Clemilda - uma morena forte, e encorpada - partiu pra cima dele e o fez lamber o chão, debaixo de tapas e pontapés.

Do lado de fora da sala de aula, intentou a vingança. Encostado no poste de “brauna”, sem mira, pois estava escuro, arremessou um calhau de pedra em direção à escadaria da igreja e acertou em cheio o seu alvo pretendido. O corre-corre foi geral. A Clemilda não morreu não, só ficou meio abobada, depois que tomou uns remédios lá na farmácia.

O ginásio era uma significação de imponência para todos. Longe de representar a literalidade de sua função, trazia na significância, a magnitude de uma época. Intercessão necessária entre o ensino primário e o ensino secundário, não durou muito, foi reformulado e passou a integrar o módulo básico a que deram a denominação de ensino fundamental.

Enquanto a Casa do Otto era preparada para agrupar as turmas, as aulas eram ministradas em lugares esparsos, indo desde o grande salão paroquial, até as instalações inconclusas do prédio construído para ser hospital. Essa pulverização dificultava a administração e fazia com que atos como o de Daniel e Clemilda acontecessem, não com freqüência rotineira, mas lá por vezes vinha uma improcedência nesse sentido.

Ele era negro, dos bem encorpados; lembrava o majestoso poste que marcava o centro da praça principal. Fazia pão, literalmente, num barraco esmirrado, de tijolo à vista, que se equilibrava numas colunas de cimento e ferro, parecendo uns palitos – novidade para a época, essas colunas de cimento. Era tudo fincado num precipício; brotavam lá do fundo do barranco e subiam até a margem da estrada que dava para os lados da fazendinha. Obra dele, que misturava a arte de fazer pão, com o oficio de pedreiro. A arte de empilhar tijolos parece ter ficado fácil com a popularização do cimento. Com uma reação exotérmica, capaz de produzir a cristalização de produtos hidratados, ganhando alta resistência mecânica, o cimento era, e é, em dias atuais, o principal produto usado como aglomerante na construção. O uso do cimento, não afastava, contudo, a ciência do prumo - “O Senhor tinha um prumo na mão e disse que poria um prumo no meio do povo (Amós 7:7-8) – Isso ele recitava com presteza e acerto, e o fazer pão, era trabalhoso. Serviço de se fazer de noite, enquanto todos dormem!

Chamado para ajudar nas reformas da Casa do Otto, por lá selaria seu destino. Ante a necessidade já extasiante, transformaram-no em Chefe de Disciplina, como deveria ser chamado, ou, “disciplinário”, como se autodefinia. A rigidez exigida para a função estava nele incorporada. Os bigodões de fios grossos e espessos escondiam com sutileza o canino encastoado de ouro e serviam ainda, para disfarçar o sorriso, que não deveria ser percebido pelos alunos, sob pena de desmoralização. A seriedade, antes de ser, tinha que parecer, daí a grande importância dos bigodes. A cabeça era rarefeita o que fazia sobressaírem as orelhas. Apelidaram-no, na primeira semana de “escovão”. Logo em seguida, sua imagem passou a ser veiculada entre os alunos, com o apodo que criava terror, e fazia tremer o chão por onde pisava.

Exerceu a função com denodo. Punha ordem. Sestros como o ocorrido entre Daniel e Clemilda, não tinham mais vez nas cercanias do ginásio. Bastava que se lhe anunciassem a presença; mesmo que deixassem sua imagem bigoduda na lousa, com o apelido registrado em caixa alta: ESCOVÃO! Isso, não tinha preço, e não tinha dono também não.

As reformas estruturais na educação do país, acabaram com o curso ginasial. A reforma absorveu Anides! Se a escolha do Chefe de Disciplina foi uma parvoíce, a abolição do ginásio o lançou no estreito caminho da sobrevivência, o que lhe custaria sérios reveses. Era um negro de alta formação, com princípios rígidos de convivência. Não foram raras as vezes, que assumiu a direção das salas de aulas, na falta de algum professor, e, brandindo o giz, descerrou seus saberes fundamentais que escondia, também, por trás dos bigodes.

Não se sabe se acertou carteira! Foi devolvido para o seu “paliteiro”, condenado a fazer pão, brevidade, caçarola e bolo de laranja. Ah! O temido “escovão” tinha ali, um comportamento completamente diferente daquele esboçado nos corredores ginasiais. Sorria largamente e ostentava os dentes brancos, contrastados com a tez feita de ébano, e o canino encastoado de ouro luzente. Passados não muitos dias, descobriu que padejar não era mais rentável, pelo menos ali. A modorra local premia-lhe, com pesadas invocações. A sobrevivência era coisa séria.

Como solução, alçou mão do prumo, esquadro, mangueiras de nivel e foi à luta. Pegar casa de empreitada. Sem projeto, somente lhe refletiria a idéia do proprietário, descrita de forma genérica, em conversa de poucos minutos. Definir posições, estrutura, estilo e afins, eram atribuições do pedreiro;

- bobo, o que nóis pode faze é o seguinte: uma conzinha mais grande, com fogão de lenha c’oa boca virada pra saída da porta; um corredor, um quarto maior desse lado, um quarto menor aqui do lado de cá, unha dispensa, e unha sala grande. Na frente a gente põe uma pratibanda, moldura unhas nervura formando uns quadrados, unhas estrela e depois é só pintar. A parede de branco e o barrado de azul...”

Dada a ordem, depois do que discutida e definida a cor da parede, outras definições como janelas, portas, passagens e espaços corria tudo por conta do pedreiro.

No caso de Anides, nada disso era necessário. O proprietário encomendara-lhe simples cômodo de despejo, um lugar para se guardar ferramentas. Combinado o preço, o calejado disciplinário deu início aos trabalhos. Estava lá o “Escovão” o Chefe de Disciplina do Ginásio, atarracado às funções de pedreiro, já de muito deixada no escaninho do esquecimento e do sossego. Abriu de vazada as pequenas e razoáveis valetas que acolheriam o alicerce pobre, todo içado em pedra seca. Pouco mais de uma semana foi o suficiente para a fixação da plataforma de seu engenho. Reluzia de empolgação. As paredes começaram a subir, tijolo pós tijolo. Ao final do dia, parede já à altura do meio da cintura, percebeu que algo de estranho ocorria naquela engenhosidade: o cômodo não tinha porta.

A Casa do Otto se transformara em sede do Ginásio, depois se transmudou em Prefeitura. Daniel, o “carijó”, e Clemilda, apararam arestas e se tornaram amigos. Anides, o escovão disciplinário, estava preso em sua própria teia; esquecera-se de deixar o vão para assentamento da porta do barraco!

Ah, padejador, é preciso “disciplinar” suas intimidades com projetos mais largos, com o barro, com o prumo; fazer pão não lhe cairá melhor?!