segunda-feira, 14 de novembro de 2011

domingo, 13 de novembro de 2011

IMPUNIDADE E CORRUPÇÃO - UM MAL QUE SE FABRICA?

Às vezes me entontece a preocupação.

Cheguei no escritório e o primeiro cliente que atendi, buscava uma informação que me obrigou a dedicar grande parcela de minha previsão de tempo para o atendimento, explicando-lhe uma série de implicações para sua conduta delitiva.

Os vários anos de militância nas sendas do Direito Criminal, tem me levado a fazer sérias restrições aos modos como o tema violência, corrupção, justiça, punição, instituições e outros derivados, tem sido tratado nos meios de comunicação.

A fala daquele cliente, infeliz, de olhos pregados nos meus, me fez perceber o quão necessário é preciso mudar a forma de abordagem desses assuntos.

Sobre a mesa, cópias de peças processuais relativas a um mariticídio, cometido mediante paga. Mulher de ímpetos voluptuosos, de libido insaciável, envolve-se com cidadão de escrúpulos duvidosos e concorda em dar cabo do companheiro. A paga teria sido feita com valores oriundos de depósitos acumulados em sua conta de poupança, alimentada pelo próprio infeliz, abatido a tiros à porta de sua casa, quando voltava do trabalho.

Processado o expediente policial, ao desaguar no judiciário, após confissão de autoria, deu-se a prisão da mandante por força de ato preventivo expedido pelo magistrado presidente do processo. Durante todo o andamento do processo, não foi possível a quebra da preventiva, culminando com a condenação da acusada a permanecer reclusa por alguns longos anos.

Àquele cliente da primeira hora, como forma de ilustração, mostrei o caso. Mantendo uma expressão de frieza e convicção, sua reação me causou espanto:

"E o sr. tá se matando na defesa porquê? Ninguém fica preso no Brasil!"

Confesso que não estava acreditando no que ouvia. Resolvi espichar a conversa e o espanto foi ainda maior:

"Nesse país só vai pra cadeia quem não paga pensão alimentícia".

Desde aquele instante, minha observação chamou a atenção para a forma como essas questões tem sido tratadas nos meios de comunicação. Vende-se irresponsavelmente uma impressão que tem cristalizado no ideário das pessoas comuns, uma falsa verdade de que o crime compensa no Brasil. Em minha maratona rotineira, enfrento periodicamente os parlatórios dos presídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde exerço minha advocacia. Nada é mais degradante que a figura do preso impotente, contido por algemas, acossado por vigias, cabeça baixa, de rosto virada para a parede, numa postura de subserviência e dominio. Não são simples alimentantes relapsos que não cumpriram com o mister de mantença de filhos e esposas. Pelo contrário, a maioria, jovens que sequer somam tres décadas de existência; tomados pelo vício implacável do tráfico de drogas, mãos sujas de sangue por bagatelas insignificantes de pedras que corroem o moral da sociedade e alimenta, por outro lado, interesses inexpugnáveis que não tem cara, não tem identidade e não aparecem.

Esses padrões não aparecem nos meios de comunicação, de há muito, não se fala em superlotação, maus tratos, tratamento desumano, falta de respeito a direitos fundamentais, presentes em nossas cadeias. Há casos de presos mantidos dentro de containers de metal, como se estivesem encaixotados como mercadorias.

Não é verdade que não existe punição no Brasil. Não é verdade que o crime compensa. Rebati de pronto e informei ao meu cliente, agora assustado, de que aquela defesa seria sustentada em breve e que a autora do inusitado crime se encontrava presa, desde o início do inquérito.

É latente que existe atualmente entre nós, uma campanha virulenta e perigosa, que tenta, por todos os modos extirpar da Carta Política alguns direitos tão fundamentais quanto inerentes à dignidade da pessoa humana. A doutrina nos ensina tratar-se de uma corrente denominada "Direito Penal do inimigo" onde se imagina que a aplicação do Talião ainda é o método eficaz para sarar todos os males da sociedade. De contra partida, não atentam para o detalhe que a supressão desses direitos, como, o direito ao silêncio, por exemplo, seria o passo mais curto para a institucionalização da tortura, do pau-de-arara, do alicate, do afogamento, e outros meios que remontam ao obscurantismo da idade média. Não imaginaram que a imposição da prisão preventiva, como regra, será capaz de institucionalizar a punição sem defesa, sem a avaliação dos elementos probatórios que compõem o processo. Seria o enfraquecimento do direito sagrado de defesa. Não avaliam, os adeptos dessa doutrina que o principio da presunção de inocência, tem como fundamento básico afastar a possibilidade de perseguições e uma série de consequencias capazes de advir desse principio medieval de que quem é acusado é quem tem o dever de provar sua inocência.

A formação de uma convicção coletiva a respeito do combate a essas garantias, leva-nos à formação de uma sociedade que desacredita de suas leis, das instituições que as produzem e das que as aplicam e executam. Mais que isso, anexam a essa convicção, que somos todos uns santinhos e que, políticos, juizes, advogados, promotores de justiça, sobretudo, são os responsáveis por tudo de ruim que acontece no país. Esquecem-se os arautos dessa mensagem que é no meio dessa população catequizada que vamos encontrar nossos políticos, juizes, advogados, médicos, engenheiros, jornalistas e cidadãos de toda espécie. É um comportamento que ao invés de ajudar na solução dos nossos problemas, contribui para o seu acirramento. Dizem que são omitidas as notícias sobre suicídio, como forma de não estimulá-los, o que alimenta e reforça ainda mais minha preocupação.

Ao abordar a questão da CORRUPÇÃO, na forma como o assunto vem sendo colocado, não vislumbro qualquer possibilidade de avanço, se não observarmos a necessidade de informar aos que tomam conhecimento do assunto que você só terá a figura do CORRUPTO, se do outro lado estiver a figura do CORRUPTOR. É como está na lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação. Mas, é preciso dizer que o CORRUPTOR é aquele que oferece a propina para não ser multado no trânsito; é aquele que aceita que a Nota Fiscal seja emitida em valores a menor do que foi pago pela mercadoria adquirida; é aquele que recebe um real a mais no troco e não informa ao caixa que o troco tá errado; é aquele que se propõe a pagar a um coyote para atravessá-lo nas fronteiras dos Estados Unidos, desanda a mandar dólares pra família, e se vangloria de ter dado tudo certo - claro, tá vindo dinheiro, ninguém questiona! É preciso contar à sociedade que corrupção não tem cor partidária não tem religião e nem sexo. É preciso contar à sociedade que a corrupção pode estar em um palacete de Brasilia, mas pode estar na cozinha de nossas casas, no supermercado da esquina, ou até na igreja que frequentamos, porque não!

Minha saudosa mãe não se cansava de nos dizer em casa que quem tinha coragem de apropriar-se de uma agulha, seria também capaz de roubar um avião(uma referência à grandeza do bem). A imaginar que iremos combater a CORRUPÇÃO apenas reivindicando cadeias e punições, como entende grande parte dos "comentadores" inútil qualquer batalha. Precisamos mudar nossa forma de observar a sociedade. Precisamos, antes de tudo, ser honestos conosco mesmo. Precisamos retomar valores e princípios tão esquecidos em troca de informações alienígenas e vazias que nos chegam de forma fácil. Precisamos exigir respeito e uma maior valoração de nossa cultura e de nossas divergências regionais, estupidamente atropeladas em troca do lucro fácil. Precisamos prestigiar e valorizar nossas instituições; precisamos acreditar que elas serão parceiras fundamentais para o abate de toda forma de concupiscência que venha a surgir no meio social. Precisamos dizer bem alto que acabar com a CORRUPÇAO, com a violência e qualquer forma de impunidade, não basta apenas cruzar as mãos em forma de pomba no peito e fincar vassouras na praça. É preciso tirar de nosso imaginário toda e qualquer forma de aproveitar-se da fraqueza de alguém para satisfazer nossos interesses. É preciso estar atento para o que fazemos no dia a dia. Precisamos dizer alto aos que nos ouvem que dizer a eles que a CORRUPÇÃO é algo que só os políticos cometem, é também uma forma de CORRUPÇÃO dissimulada, e essa é muito mais grave que qualquer outra forma de se corromper.

Nada está perdido, contudo. Um pequeno gesto pode ser o prenúncio de uma grande mudança.

Wagner M. Martins - Advogado e Escritor

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

sábado, 10 de setembro de 2011

UM BICHINHO À TOA


Já está disponivel, no site da editora Biblioteca24x7.com, o livro UM BICHINHO À TOA, com capa do Camilo Lelis(Camilinho) prefácios de Max Portes. A aquisição poderá ser feita através do site da editora:

www.biblioteca24x7.com.br

Através desse mesmo endereço adquira também "FALA, FILHO DA MÃE!!!" de minha autoria

Entrevista concedida à TV LESTE de Governador Valadares, em 13 de agosto de 2011



Outras opções de aquisição:

www.livrariacultura.com.br e, para quem está fora do Brasil: www.amazon.com

AFINANDO O DAGUERREÓTIPO


Cidoca só queria mesmo era ver seu retrato na parede.

Quando olhava a fotografia de “Seu” Juca e dona Mariquinha, pendurada na sala ficava imaginando sua moldura ali. Ela de cabelos penteados, preso de rabo de cavalo, o rosto espelhado de pó-de-arroz e a moldura envernizada dando suporte no seu feitio.

Nunca teve coragem de falar com ele. Não tinha noção dos “cobres” que desprenderia pra fazer sua obra de arte.

Bem que podia falar pra “Seu” Juca: “Bah, pra que retrato? Desperdício...” Devia ser muito dinheiro. Caro, diria “Seu” Juca. Afinal, a domagem do aparelho era tão complicada quanto o pronunciar do seu nome: daguerreótipo! Mais parecia nome do Capeta, isso sim.

Da vez que Cidoca viu ele fotografando os dois patrões, ficou imaginando. Ele carregava o daguerreótipo encaixado na bicicleta. O aparelho criado pelo francês Louis-Jacques-Mandé Daguerre, no entremeio dos Séculos XVII e XVIII, consistia na técnica da utilização de uma fina camada de prata polida, como receptáculo da imagem que se fixava sobre placa de cobre, sensibilizada com vapor de iodo. Ficava tudo capturado ali dentro daquela caixinha quadrada, feita de metal, o que intrigava Cidoca, que não tinha nenhum entendimento de daquerreótipo e nem nunca ouvira falar dessas coisas. Sabia de nada disso e só queria um retrato na parede.

Desembrulhava o bichinho e o encaixava enroscado em cima de um tripé. Era uma maquineta de metal, com um fole de papel preto na frente, com uma lente de vidro, um rabicho com um dispositivo de arame de aço, pendurado de lado, fino, parecendo com uma seringa de injeção, que ele chamava de disparador. Meio simplório, não fosse o fole preto de lente de vidro na ponta. O tripé era de madeira. Preso com uns parafusos, desses de borboleta, que não precisa de ferramenta pra apertar, pintado de preto, era todo regulável. Ele mesmo o fizera.

Antes do momento exato de fotografar, desenvolvia uma intrincada cerimônia em volta daquela geringonça que mais parecia um bicho-pau, um louva a Deus. Era um ritual engraçado igual um bailado de ave na choca. Espichava o fole, encurtava o fole, regulava na borboleta, encurtava as pernas do tripé, fechava as pernas do tripé, tornava a abrir, desarrochava a borboleta, arrochava de novo. Observava de esguelha, com um olho fechado, através de uma janelinha na parte traseira da maquineta. Acertava cuidadosamente a cabeça de dona Mariquinha, voltava a observar de olho fechado...

- “Seu” Juca, agora o senhor. Vira a cabeça um pouquinho pra direita... isso... isso... a senhora fica quieta, não se mexa...

Jogava um pano preto sobre a cabeça e fazia a conferência final, agora era pra valer: PRONTO! Abria o compartimento traseiro do “daguerreótipo” puxava uma chapa metálica e avisava por fim:

- Os dois quietinhos; sem respirar! Olha o passarinho...

Pressionado o disparador, ouvia-se, um chiado feito ferro riscando em ferro e logo em seguida: CLAPT... Era o barulhinho da engenhoca registrando o instante final do milagre, do retrato.

Cidoca observava de longe. Não queria ficar assentada daquele jeito. Queria uma foto em pé. Sim, em pé, de corpo inteiro, queria o espectro da beleza e do milagre, registrado para sempre, no traço de suas faces arroxeadas de pó-de-arroz, no cabelo de rabo-de-cavalo, no detalhe da mão na cintura demarcando os quadris arredondados, do banho tomado, dos sapatos apertando os pés, da fita no cabelo e o olhar sério, guardado para a eternidade, para a lembrança dos que nem sabe se viriam! Ah... tudo ali, dentro do “daguerreótipo”, estojinho de nome estranho, mas de efeito delirante!

Não passava dois meses sem que ele pousasse ali no casarão da fazenda. Os retratos eram feitos fora, imaginava Cidoca. Aquilo era coisa de ser feita na cidade, por algum doutor. Mas ele mesmo os fazia. Voltava depois para a entrega, sempre carregando o seu daguerreótipo. Podia surgir a surpresa de uma nova encomenda. Não tinha outro na região, era o único.

Cidoca precisava de coragem. Talvez se demonstrasse curiosidade sobre o aparelho, talvez quando fosse arrumar o quarto onde ele dormia!! Tinha uns cobrinhos guardados e bem podia dar conta de pagar. Até porque, “Seu” Juca o tinha na sua confiança, e se precisasse fazer uma prestaçãozinha, teria crédito. Assim comprava rendas e fitas de Tião Norato, o caixeiro viajante da região.

Naquele dia ele chegou debaixo de chuva. Entrou no casarão, como gente de casa, que era, carregando o “daguerreótipo” embrulhado no pano preto. Tirou as botinas e caminhou pro quarto onde costumeiramente descansava.

Depois de preparar-lhe a janta Cidoca estufou o peito, criou a coragem que vinha acumulando desde tempos e puxou conversa, na intenção de fazer o seu pedido. Deixaria a proposta da prestação pra falar no final da prosa, se precisasse.

- Sô Zias, carece do senhor tomar um banho e vir jantar que deve de tá morrendo de fome. Num minuto preparo a comida pro senhor. Vô fritar ovo, o senhor vai querê que faiz ele mais mole ou mais duro?

Sem se voltar para Cidoca, enquanto cuidava de preservar sua ferramenta de trabalho respondeu-lhe na maior sem cerimônia:

- Ah... pode fazer três moles, três duros, o resto pode ser de qualquer jeito!

Cidoca não entendeu nada. Teria aquela fome alguma coisa a ver com um daguerreótipo? Fome do Capeta!!! Pensou. Deixou o pedido pra quem sabe quando!


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NEGORIDES


Eurides é nome próprio que vem do grego. Significa impetuoso, muito agitado.

Ele era negro e não tinha nada de impetuosidade capaz de lhe lembrar o nome. Os braços desciam além da cintura e projetavam-se mais longos do que o normal, induzindo a uma comparação com o protótipo do ancestral que moldou a todos para a atualidade. Hábil impressor tipográfico administrava com maestria sua Heidelberg alemã que roncava quase que doze horas seguidas, naquele pavilhão perlustrado de sarcasmo, ambiente coletivo, onde todos se sujeitavam à troça e à fanfarronice dos companheiros. Faltava-lhe um epíteto, talvez, “o rei da automática”, ou “o rei negro da impressão”.

Com ou sem epítetos, ele sobrevivia e não dava bola para os chistes que surgiam a cada quarto de hora, mas cada um era respeitado ao modo de seu comportamento. Ria como se estivesse engolindo o riso e assim era melhor. Nada que se lhe quisesse impor resistia por muito tempo. Seu modo sereno de apreciar as piadas que faziam com ele, resumia-se num amarelo sorriso disfarçado no canto da boca e a compenetração no manete da Heidelberg que comandava. Agia assim por estratégia; penso. Pau pra toda obra, abandonava vez em quando, a automação da “alemãzinha” e tomava a guia da velha Minerva formato quatro, negra, feito ele, encostada num descanso forçado no aguardo de uma emergência, quando a engenhoca importada não suportava.

Essa é linguagem pouco conhecida, que Eurides dominava com maestria. Formato quatro significa a divisão de uma folha de papel do tamanho de uns dois metros por dois metros, mais ou menos, em quatro pedaços com medidas iguais. As especificações, Minerva e Heidelberg, denominam o gênero máquinas de impressão tipográfica, ofício que já não mais representa o significado de tantos anos atrás, ocasião em que nos encontramos pela vez derradeira.

O surgimento de uma nova metodologia, nas técnicas de impressão, impusera o risco de aposentadoria para profissionais de impressão das tipografias, geniais operários que nem Eurides, e trouxe uma revolução sistêmica nas comunicações, fazendo que as pessoas ficassem mais próximas umas das outras. É impossível que não nos adaptemos a essa nova modalidade de coexistência, representada pela proliferação do computador. Sim, esse mesmo instrumento que aposentou de vez a tipografia que durou de Gutenberg a Eurides, é o mesmo que cria a possibilidade da comunicação imediata entre as pessoas. Mas que Eurides não conhece, infelizmente.

Dentro dessa nova dinâmica topei cara a cara com Josélia Engels. Moçoila bonita, com face de traços largos, seu rosto emoldurava o quadrilátero impreciso de uma página eletrônica, onde fizera inserir o seu apelo de busca do pai, Eurides da Silva.

Estava lá, bem legível o recado. Diante de um castelo qualquer da Alemanha, clamava pela condescendência de algum residente na distante Caratinga de Minas Gerais, que não conhecia. Dessem-lhe notícias do pai, pois não o via por mais de duas décadas. Percebi logo que a busca de Josélia iria esbarrar em “Negorides”, aquele mesmo, que conheci anos atrás, na mesma cidade de Caratinga. Só podia ser ele.

Sem perder o fluxo da informação, estendi a abrangência do apelo e pude dividir o êxito com a jovem Josélia, em menos de uma semana. Encontrei-o. Estava ainda lá, escarafunchando uma Heidelbergzinha, tão desatualizada, em uma romântica tipografia num encontro de ruas da cidade onde sempre esteve.

A descoberta de “Negorides” me valeu a amizade da filha, com a promessa de eternizar o encontro através de um registro fotográfico, para posterior envio às terras saxônicas.

Com origem no “entrudo” português, para mim o carnaval é a expectativa de fuga do grande centro. Submeto-me ao suave descanso que os três dias da carne proporcionam. Prefiro sempre o bucolismo da cidade pequena no interior. Preparei então, o espírito e a máquina fotográfica. O espírito era meu mesmo, o adereço digital, de minha irmã, a quem encarreguei de fazer as fotos. Visitaríamos “Negorides” na segunda de carnaval. Fiz um compromisso com Josélia e estava disposto a cumpri-lo.

Ao final de meia dúzia de horas, longas e cansativas, seguidas a um indigesto congestionamento de almas no terminal de embarque da capital, em razão da folia, chegamos a nosso primeiro destino; uma longa espera nos levaria até Entre Folhas, onde nosso pai nos aguardava de tornozelo quebrado.

No entroncamento de vias, que ligam as cidades grandes, sentamo-nos no banco liso de madeira e conversávamos. O trânsito era intermitente.

A conversa entre minha irmã e eu foi interrompida abruptamente com a aparição inesperada de “Negorides”. Foi tudo tão rápido que parecia impossível classificar aquilo como verdade. Caminhando em nossa direção, trazia na aparência os mesmos traços de trinta e oito anos atrás. Apenas o encanecido dos cabelos fazia diferença, no contraste da moldura de seus olhos grandes, e o sorriso largo e amarelo sendo engolido, estrategicamente, como forma de defesa, na medida em que eu me aproximava, insistindo em chamá-lo pelo nome.

Não demorou muito para me reconhecer. Nos abraçamos com carinho e eu lhe falei de Josélia. Ele também me falou da filha, feliz ao seu modo. Prontamente posicionou-se para uma série de fotos, a meu comando, que fizemos ali mesmo, na beira da estrada. - Não o encontraria - disse. Com o feriado de Momo, só voltaria ao serviço depois das cinzas.
Se alguma força estranha o levara ao meu encontro, não discutirei, o certo, pois, é que terei cumprido efetivamente o compromisso firmado com Josélia Engels, quando, do outro lado do mundo, ela puder, lendo essas anotações, folhear as fotografias do pai, de quem não tinha notícias há vinte e três anos. Valeu! Foi grande também minha felicidade, não só por atender Josélia, mas por tê-lo encontrado e ter podido abraçá-lo.


Ler mais: http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=192536#ixzz1XYbzZvmX
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NEGORIDES


Eurides é nome próprio que vem do grego. Significa impetuoso, muito agitado.

Ele era negro e não tinha nada de impetuosidade capaz de lhe lembrar o nome. Os braços desciam além da cintura e projetavam-se mais longos do que o normal, induzindo a uma comparação com o protótipo do ancestral que moldou a todos para a atualidade. Hábil impressor tipográfico administrava com maestria sua Heidelberg alemã que roncava quase que doze horas seguidas, naquele pavilhão perlustrado de sarcasmo, ambiente coletivo, onde todos se sujeitavam à troça e à fanfarronice dos companheiros. Faltava-lhe um epíteto, talvez, “o rei da automática”, ou “o rei negro da impressão”.

Com ou sem epítetos, ele sobrevivia e não dava bola para os chistes que surgiam a cada quarto de hora, mas cada um era respeitado ao modo de seu comportamento. Ria como se estivesse engolindo o riso e assim era melhor. Nada que se lhe quisesse impor resistia por muito tempo. Seu modo sereno de apreciar as piadas que faziam com ele, resumia-se num amarelo sorriso disfarçado no canto da boca e a compenetração no manete da Heidelberg que comandava. Agia assim por estratégia; penso. Pau pra toda obra, abandonava vez em quando, a automação da “alemãzinha” e tomava a guia da velha Minerva formato quatro, negra, feito ele, encostada num descanso forçado no aguardo de uma emergência, quando a engenhoca importada não suportava.

Essa é linguagem pouco conhecida, que Eurides dominava com maestria. Formato quatro significa a divisão de uma folha de papel do tamanho de uns dois metros por dois metros, mais ou menos, em quatro pedaços com medidas iguais. As especificações, Minerva e Heidelberg, denominam o gênero máquinas de impressão tipográfica, ofício que já não mais representa o significado de tantos anos atrás, ocasião em que nos encontramos pela vez derradeira.

O surgimento de uma nova metodologia, nas técnicas de impressão, impusera o risco de aposentadoria para profissionais de impressão das tipografias, geniais operários que nem Eurides, e trouxe uma revolução sistêmica nas comunicações, fazendo que as pessoas ficassem mais próximas umas das outras. É impossível que não nos adaptemos a essa nova modalidade de coexistência, representada pela proliferação do computador. Sim, esse mesmo instrumento que aposentou de vez a tipografia que durou de Gutenberg a Eurides, é o mesmo que cria a possibilidade da comunicação imediata entre as pessoas. Mas que Eurides não conhece, infelizmente.

Dentro dessa nova dinâmica topei cara a cara com Josélia Engels. Moçoila bonita, com face de traços largos, seu rosto emoldurava o quadrilátero impreciso de uma página eletrônica, onde fizera inserir o seu apelo de busca do pai, Eurides da Silva.

Estava lá, bem legível o recado. Diante de um castelo qualquer da Alemanha, clamava pela condescendência de algum residente na distante Caratinga de Minas Gerais, que não conhecia. Dessem-lhe notícias do pai, pois não o via por mais de duas décadas. Percebi logo que a busca de Josélia iria esbarrar em “Negorides”, aquele mesmo, que conheci anos atrás, na mesma cidade de Caratinga. Só podia ser ele.

Sem perder o fluxo da informação, estendi a abrangência do apelo e pude dividir o êxito com a jovem Josélia, em menos de uma semana. Encontrei-o. Estava ainda lá, escarafunchando uma Heidelbergzinha, tão desatualizada, em uma romântica tipografia num encontro de ruas da cidade onde sempre esteve.

A descoberta de “Negorides” me valeu a amizade da filha, com a promessa de eternizar o encontro através de um registro fotográfico, para posterior envio às terras saxônicas.

Com origem no “entrudo” português, para mim o carnaval é a expectativa de fuga do grande centro. Submeto-me ao suave descanso que os três dias da carne proporcionam. Prefiro sempre o bucolismo da cidade pequena no interior. Preparei então, o espírito e a máquina fotográfica. O espírito era meu mesmo, o adereço digital, de minha irmã, a quem encarreguei de fazer as fotos. Visitaríamos “Negorides” na segunda de carnaval. Fiz um compromisso com Josélia e estava disposto a cumpri-lo.

Ao final de meia dúzia de horas, longas e cansativas, seguidas a um indigesto congestionamento de almas no terminal de embarque da capital, em razão da folia, chegamos a nosso primeiro destino; uma longa espera nos levaria até Entre Folhas, onde nosso pai nos aguardava de tornozelo quebrado.

No entroncamento de vias, que ligam as cidades grandes, sentamo-nos no banco liso de madeira e conversávamos. O trânsito era intermitente.

A conversa entre minha irmã e eu foi interrompida abruptamente com a aparição inesperada de “Negorides”. Foi tudo tão rápido que parecia impossível classificar aquilo como verdade. Caminhando em nossa direção, trazia na aparência os mesmos traços de trinta e oito anos atrás. Apenas o encanecido dos cabelos fazia diferença, no contraste da moldura de seus olhos grandes, e o sorriso largo e amarelo sendo engolido, estrategicamente, como forma de defesa, na medida em que eu me aproximava, insistindo em chamá-lo pelo nome.

Não demorou muito para me reconhecer. Nos abraçamos com carinho e eu lhe falei de Josélia. Ele também me falou da filha, feliz ao seu modo. Prontamente posicionou-se para uma série de fotos, a meu comando, que fizemos ali mesmo, na beira da estrada. - Não o encontraria - disse. Com o feriado de Momo, só voltaria ao serviço depois das cinzas.
Se alguma força estranha o levara ao meu encontro, não discutirei, o certo, pois, é que terei cumprido efetivamente o compromisso firmado com Josélia Engels, quando, do outro lado do mundo, ela puder, lendo essas anotações, folhear as fotografias do pai, de quem não tinha notícias há vinte e três anos. Valeu! Foi grande também minha felicidade, não só por atender Josélia, mas por tê-lo encontrado e ter podido abraçá-lo.


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domingo, 30 de janeiro de 2011




Doutor quando mecê for
Lá pras bandas da Serrinha
Não procure outra morada
Que eu lhe ofereço a minha

Um criado mecê tem
Pra fazer tudo que eu sei
Pra dar água pros cavalos
E cuidar dos seus arreios

Uma casa com varanda
E paçoca com feijão
Uma dúzia de criados
A sua disposição

Uma mulher pra lhe servir
Numas coisas,
Em outras não.

Que nem Jiló - Maria Eugênia

Geni e o zepelim

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Trovadores Urbanos -- Canções Paulistas Ao Vivo - Faixa 1

A cruzada da Veja contra Chico Buarque

blog do Miro

reproduzo artigo de Washington Araújo, intitulado “A reinvenção e o veneno”, publicado no sítio Carta Maior
E pensar que o noticiário dos jornais diários mudou completamente em 30 dias! As grandes apostas dos diários em 22/10/2010 eram feitas em cima do caso da bolinha de papel que havia “quicado” na calva de José Serra. O SBT e a Globo travavam sua disputa com os poucos elementos da verdade: foi uma bolinha inofensiva ou esta teria sido apenas o primeiro objeto arremessado contra o então candidato tucano? O trololó da quebra de sigilo fiscal de Verônica Serra e mais 3.999 cidadãos brasileiros ainda reverberava com indícios de que quem estava por trás de tudo era o jornalista mineiro Amaury Junior. A peregrinação de Dilma Rousseff e José Serra por templos religiosos aparecia com menor força. O personagem escaldado Paulo Preto continuava naquele lusco-fusco: merece freqüentar capas de jornais ou não? E o mais que tínhamos eram as pesquisas intenção de voto no segundo turno. Todas dando vantagem de Dilma variando de 10 a 12 pontos sobre Serra.

É impressionante a capacidade de envelhecimento que as notícias têm. Os jornais, porque estou aqui mais focado nestes, parecem clínicas pediátricas que na eternidade de 24 horas se transformam em robustas clínicas geriátricas. Os eventos pautados pela imprensa escrita no mês passado parecem coisas muitas antigas, datadas demais, passadas em excesso, meros esperneios inúteis e toda sorte de energia gasta para manter acesa a chama do jornalismo. E para isso, sem rodeios, se utiliza cada vez mais óleo da pior qualidade.


Dito popular

O jornalismo precisa se reinventar todo dia. Buscar forças não se sabe bem onde para continuar avante. Como toda profissão que seja digna a um ser humano, o jornalismo precisa de doses diárias de utopia. Não a utopia representada por “meros devaneios tolos a nos torturar”. Nem a utopia que abarca amontoado de piedosas intenções. Penso na utopia de fazermos um jornalismo melhor, veraz, contundente na medida, correto e, também, sem segundas nem terceiras intenções, sem agendas sequestradas de grupos secretos como os Iluminati.

Utopia que se preze é aquela que nunca se realiza. Está sempre pendurada no horizonte. E fica no horizonte para termos certeza de que nunca a alcançaremos. E quanto mais nos aproximamos da utopia mais ela recua. Avançamos quatro passos ela recua quatro passos. Mas ainda assim a utopia tem sua serventia. Ela serve unicamente para nos fazer caminhar.

O jornalismo deve nos fazer crer que é possível viver para além da infâmia, dos escusos jogos de interesse. E nos alertar para quando estivermos prestes a confundir o destino com o tempo presente. Sem a dose de utopia diária fica quase impossível manter essa certeza de que amanhã o mundo pode ser bem diferente do que é hoje. Em uma época marcada pelo “vale quanto pesa”, falar em utopia parece ser o absoluto nonsense. É que há que se transformar a utopia em ações esculpidas na realidade nossa de cada dia. E voltamos a pensar sobre o destino de irmãos siameses a atar os fins e os meios.

Estava em meio a tais pensamentos quando, num estalo, pensei sobre as relações dos meios de comunicação com aqueles por ela eleitos como “desafetos”. Refiro-me mais recentemente à cruzada da revista Veja para menosprezar, ridicularizar o cantor e compositor Chico Buarque. E tudo por causa de Prêmio Jabuti. E tudo porque a imprensa parece desconhecer o que há muito reza o ditado popular: “Todo mundo sabe que jabuti não sobe em árvore. Se lá está é porque alguém o colocou”.

“Cansaço e irritação”

Comecemos pelo começo, já nos ensinava Heidegger. Chico Buarque é tímido e sempre foi tímido. Assume que não tem medo de público. Ao contrário, sente pânico. E de onde vem esse mal-estar logo que o artista sobe ao palco? É que Chico sabe que ali, naquele buraco negro que é a boca de cena, estará à frente de centenas, milhares de pessoas. E sofre com isso. Em suas palavras: “A gente é visto sem ver. Terrível”.

Para um tímido de carteirinha, com crachá e tudo, deve ser no mínimo desagradável ficar sabendo que a revista da Abril não lhe perdoa o sucesso. Como dizia Tom Jobim, velho amigo e grande parceiro de Chico, “se existe uma coisa que o brasileiro não perdoa, esta é o sucesso”. Afinal, em que grama a imagem, a obra e a vida de Chico Buarque seria aumentada – ou diminuída – por haver sido contemplado com o Prêmio Jabuti? Longe de ser privilegiado ao receber um prêmio, seja de música ou de literatura, outra constatação evidente é que é bem mais plausível que Chico agregue valor ao prêmio que o contrário.

Não seria obrigação de jornalistas minimamente informados beber do senso comum e dar conta de que Chico é hiperfacetado, pode ser apreciado como cantor, compositor, roteirista e teatrólogo ou então como escritor e pensador? Chico nem reivindica qualquer aprovação, selo de qualidade ou beneplácito dessa ou de outra imprensa. A timidez buarquiana deixa evidente que se existe algo que ele recusa é o tal rótulo da unanimidade. Não precisa ser unanimidade – até porque a palavra ficou amaldiçoada depois de andar de braços dados com a burrice, segundo a verve de Nelson Rodrigues.

A verdade é que o irmão de Raízes do Brasil – sim, porque falam que livro é como filho e seu pai Sérgio Buarque de Hollanda simplesmente brindou nossa cultura com esta obra – trafega na cultura brasileira com passe livre, 24 horas ao dia, 365 dias ao ano, sendo festejado nos papos da Zona Sul carioca e também nas quadras das escolas de samba dos morros dessa cidade. Não à toa foi referido por Dona Zica como “Chico Buarque de Mangueira”. Sua vida, sua música, seus livros, suas peças, tudo isso foi tema do samba enredo da Estação Primeira de Mangueira em 1998.

Chico não contava 30 anos de idade quando Veja, em sua edição de 2 de maio de 1973, já o adotara como declarado desafeto. O título de alentada “reportagem” era muito claro: “Brasileiro, batuqueiro, encrenqueiro”. Destaquei o seguinte:

“Os variados personagens interpretados nos últimos meses por Chico Buarque são, pela intensidade com que atingem o público, necessariamente contraditórios. Muitos de seus admiradores preferem ainda o Chico outros tempos, menos elaborado, feliz com sua Joana debaixo do braço, carregadinha de amor. Para um reitor em Minas, suas palavras nada tinham de talentosas ou corajosas, classificando-as publicamente como a expressão de um bêbado e um imoral. Os censores, talvez excessivamente exasperados por alguns casos isolados, não lhe dão tréguas. Assim, cinco anos depois de ter escrito e vomitado a peça ‘Roda Viva’, onde manifestava seu cansaço e irritação pelo fato de ser um ídolo do qual todos tudo esperam, ele está mais uma vez numa roda-viva de trabalho, receios e angústias…”

Importância relativa

Muitos são os colunistas de Veja que se dedicam com afinco ao esporte de açoitar o filho de Memélia. Diogo Mainardi em sua crônica “Edna entendeu tudo”, de 11/7/2009, escreveu que…

“Edna O’Brien conheceu ‘Chico’ uma semana atrás, na Flip, em Paraty. Depois de participar de um debate, ela foi arrastada a um encontro entre Chico Buarque e Milton Hatoum. O que ela afirmou, assim que conseguiu escapar do encontro? Que Chico Buarque era uma fraude, que ela se espantou com sua empáfia e com seu desconhecimento literário, e que se espantou mais ainda com sua facilidade para enganar a plateia da Flip.”

Em 19/10/2010 a coluna de Augusto Nunes anotava a mais importante frase de um artista brasileiro pronunciada ao longo da campanha eleitoral de 2010. Tem a assinatura de Chico e ele a pronunciou no lotado Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, quando centenas de artistas declararam apoio a Dilma Rousseff: “O Brasil é um país que é ouvido em toda parte porque fala de igual para igual com todos. Não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia e o Paraguai”. O colunista agregava de sua lavra essas pérolas de urbanidade:

“Chico Buarque, ao declarar apoio a Dilma Rousseff, reforçando a suspeita de que o cérebro é dividido em compartimentos estanques, o que permite que convivam na mesma cabeça, por exemplo, um inimigo de ditaduras militares, um admirador de ditadores latino-americanos, um compositor genial e uma besta quadrada em política.”

Para alguém que compôs coisas como “Deus lhe pague”, “Rita”, “Pedro Pedreiro”, “Quem te viu, quem te vê”, “Brejo da Cruz”, “Olhos nos olhos”, “Beatriz”, “Paratodos” e levando em conta a exuberante produção poética (e literária) desse parceiro contumaz de Tom Jobim, Vinícius de Morais, Rui Guerra, Francis Hime e Edu Lobo, a revista precisará consumir ainda algumas toneladas de tinta e papel para começar – quem sabe? – a ficar na altura de seu antagonista e, se algum dia for conseguido o intento, dar início ao debate. Mas, então, sem saber o que será, restará apenas desalento com todo sentimento investido por Chico na construção de uma gota d’água.

Quanto aos jabutis, é bom que se diga que este jabuti-caçula faz companhia a outros dois ganhos pelo mesmo Chico. Para quem enfrentou um Maracanãzinho lotado – em outubro de 1968 – vaiando sua “Sabiá” na ilustre companhia de seu “maestro soberano”, o sr. Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, qual seria mesmo a importância de um jabuti?

domingo, 16 de janeiro de 2011

Bi Centenário de Entre Folhas



Acordo no ano 2011. Até me acostumar com a grafia correta do ano, lá se iriam algumas folhas de cheque. Coloco o verbo nesse tempo porque já se foram muitos, os anos em que não uso essas folhinhas que conspiram a favor do estelionato. Cheque é cabeça, ou ponta, ou incentivo ao estelionato; crime do Códex que os “achistas” de plantão teimam por querer modificar, mas que leva o desabusado ao risco de uns cinco anos de cadeia.

Desisti do cheque, quando percebi que não possuía as qualidades para aguentar a tentação do “pós datado”. Sim, a termologia correta é essa: pós datado. É do codex também. Inventaram um pré-datado, que combina muito bem com o 71. Quando dizem 71, na verdade, querem dizer 171, o número do artigo que dá os cinco anos de cana.

E que é que tem a ver isso tudo? Passo essa escorregadela pra justificar a data. Pra dizer que não corro esse risco de errar. Na verdade, só vou manejar datas uns bons dias depois do inicio do ano, quando volto do recesso merecido que nos restou da campanha virulenta contra as férias forenses do meio de ano. Diziam que era pra agilizar as ações do judiciário. Ledo engano. Continua tudo paradin, paradin…

Nesses dias, corro pra Entre Folhas, pra que o recesso se imponha com mais deleite. Nesse prenúncio de 2011, meu recesso sofre uma delirante ameaça com a inundação da cidade. Vi repassar em meus olhos, o desastre de 1981 quando metade de tudo ruiu e a lama fez camadas pelas ruas e casas. Pensei que encontraria as coisas tal como naquela época. Me surpreendi. Que estava complicada a coisa, não há negar, mas não chegava nem perto do que víramos 29 atrás. Assim o entendimento do Tatá de João Otacílio, do Adão Profiro, do Deninho e do Zé Andrade.

Naquele ano longínquo, não tínhamos a estrutura de hoje. Quando a notícia me chegou, lá atrás, já eram passadas umas doze horas da hecatombe. Dessa vez, pude ouvir o borbulhar das águas, no meio da madrugada, em telefonema diligente do Nem Longino. Avisei a galera ainda no lusco fusco. Acho que sempre sou o primeiro a receber esses avisos. Não sei porque não, mas me ligam antes de qualquer coisa. Não foi preciso mobilizar o batalhão de “madruvás” espalhados pelos abissais vales de Belo Horizonte, como da outra vez. As coisas agora, chegavam de roldão em caminhões de donativos. A imprensa nacional se encarregava de difundir o lamento. Entre Folhas foi para os ares da galáxia. O mundo todo, assistiu a fúria do ribeirão da cidade do Meio Quilo. Um rio nanico, anão feito ele, mas que de um momento para o outro se transformou num dragão que ruge, de peito estufado, e explode dentro de seus limites. Passada a tristeza inicial, o ribeirão volta a dormitar, “esquecido” como o “esquecido” Meio Quilo. Ninguém fala dele. Vira Geni; jogam lixo nele, jogam bosta nele…

Bi-centenária Entre Folhas? Assim. Com muita água e pouca memória

Converso com Zé Andrade. O fortunato líder concentra conhecimentos profundos sobre a história da região. Concorda comigo em muitas coisas, em outras não. Mas eu também discordo dele em vezes. Somando os dados que temos, concluímos que a povoação do lugar onde está assentada hoje, a cidade de Entre Folhas teve início por volta dos anos 50, 60 do século XIX. Concordamos ainda, que a história dessa terra precisa ser destacada com cores reais; deve-se baixar no garimpo da pesquisa cientifica, e não em apelos ufanistas apenas.

Há fatos que são notórios. A história que se conta hoje, sobre uma possível influência de um suposto miliciano das tropas imperiais, não se sustenta. A própria ausência de costumes ligados à sede da província em nosso meio, principalmente na culinária destrói a tese do miliciano. Não há vestígios da presença escrava em nossa região. As famílias povoadoras, todas elas, são “lá de fora”, e esse “lá de fora” guarda grande relação com a região de Juiz de Fora(Tocantins, Piraúba, Rio Pomba, Guarani, etc.), o que nos relega ainda hoje uma grande aproximação com o Rio de Janeiro. Uma culinária rica em produtos dos quintais como a carne de porco, bem marcada pela feijoada, o frango com quiabo, o angu, os derivados do leite são características marcantes da Zona da Mata mineira, região donde saímos para nos transformar em Vale do Rio Doce, numa migração bastante autoritária.

De forma diferente, as cidades com ligações mais estreitas com o núcleo do poder, central, como Sabará, Mariana, Santa Luzia, Caeté, Itabirito, aquelas incrustradas no leito do Rio das Velhas, praticam uma culinária diferenciada da nossa (estão presentes na mesa: o ora-pro-nobis, o cansanção, o broto da samambaia, etc.), tem costumes diferentes, tem uma presença maior do negro escravo, com relatos de atrocidades das mais cruéis em seus casarões, o que não se vê pelos nossos lados. A própria arquitetura se destaca pela singeleza de casarões práticos, numa contraposição ao fausto do ouro que se verifica nos pórticos sagrados da região surgida do brilho do sabarabuçu.

Mas, isso é papo de muitas horas, com que não me canso de discutir com o velho líder. Acho que precisamos nos reciclar. Por fim, boto olhos de tersol nessa visão de bi-centenário. Zé dá uma bela risada, mas não somos historiadores, nem eu nem ele. A palavra deve ser passada para os especialistas. Datas são coisas muito sérias, história também. Há nomes que precisam ser resgatados. Santos Mestre é um deles. Foi uma das maiores lideranças regionais que por aqui passaram. Um nome bem maior que um reles miliciano sem identidade.