quarta-feira, 13 de maio de 2009

A PERNA DE BENZINHO, OU, O BODE

A casinha era humilde, encravada entre tantas, todas, igualzinhas uma e outra, praxe de final de rua, onde a população mais pobre se acotovela, quando pode, em janelas contorcidas, equilibradas em paredes de adobe sem reboco, quando não da ripa linhenta de palmito, travadas com cipó São João e revestidas de barro cru. São as casas de taipa, pra nós da região do Entre-Folhas, casas de pau-a-pique ou de barro batido.

Como a aparência externa, o interior também era de uma uniformidade estremamente resumida: piso de chão batido, “encerado” com bosta de boi diluída em água, paredes caiadas de barro branco e o fogão de lenha na vigília intermitente da porta da cozinha, como um duende, a bocarra fumegante voltada pro cômodo da sala. Este por sua vez tinha como ornato de parede uma estampa de Nossa Senhora Aparecida, uma folhinha Mariana, no costão da porta da rua, e uma foto do escrete brasileiro, campeão do mundo em 1962. A mobília resumia-se a um banco rústico, de madeira, com pernas arreganhadas, nada mais.

De comer, só o essencial. Havia mesmo dias em que o desjejum era uma“cruz na boca” e a misericórdia de Deus.

Tamanha miséria não afogava o carinho entre os dois amasiados, sem filhos, às mil maravilhas no benzin pra lá, benzin pra cá, naquele tiquinho de nada de casebre.

Quitéria bem cedo sacudia Venâncio, emborcado no colchão de palha de milho, esparramado sobre o catre:

- Levanta benzin!

Dava um trato ligeiro na arrumação da cozinha e sumia coxeando da perna, emaranhando guaximas pelo quintal até a pedra do poço. Mergulhava até a cintura, no remanso do corguinho e se punha a lavar... sabão-preto, fabricado em casa mesmo, resto de sebo ganhado do açougue, lata de querosene, das grandes, equilibrada sobre fornalha de pedra e a decoada pingando semana inteira: pim... pim... pim... à espera do ponto.

As trouxas de roupa pegadas pra lavar na rua, servia para aumentar o ganhame, tão minguado naqueles dias de sofreguidão; essas, lavava com sabão Mossoró, amarelo e pintadinho que nem banana ouro, de cheiro mais suave, utilizado também para o banho do sábado, pois os trocados da lavação recomendavam economia e não suportavam gastos exagerados e supérfluos.

De sua casinha, em mesmas proporções, no lado contra do rio, Nania vigiava e reparava as dificuldades daquela mulher trabalhadeira, no vai-e-vem de semana inteira, trouxa de roupa na cabeça, varando quintal pra-lá-e-pra-cá. De Venâncio não tinha referência. Era um folgadão.

Vida difícil. Venâncio era aquela pustema de paciência e sossego. Uns bicos daqui e de lá, na cata de lenha prá vender na rua, pegar animal no pasto, um mandadozinho aqui, outro ali... quando dava de encontrar animal arisco e tinha que correr atrás, dormia no descanso, feito um inocente, até perder o sol de vista. De tarde, não perdia por nada uma fiada de prosa no “pau-da-grosa”.

Que estropiada! Correr animal daquele jeito em troca duns míseros quinhentos reis, que não davam nem pra aumentar o tamanho da perna de fumo... o jeito era dormir; “dormir às bandeiras despregadas”, como dizia Quitéria.

Esticou os braços ainda adormecidos, enfiou os pés na botina chiadeira e saiu, sem nem ao menos perceber que sua mulher, ainda não retornara do batedor de roupa na beira do corgo. Bah! Conversa de lavadeira não tem fim.. .

Ganhou a rua empoeirada e tomou o seu rumo. Enquanto caminhava a passo medido, tirou da orelha o “toco” meio-pitado do cigarro de palha e acendia e reacendia o danado, que teimava em não pegar, devido, sei lá, à qualidade do fumo – “soca, com certeza...” Acender a binga naquele roletão de pavio comprido, sem o luxo da gasolina de combustível exigia arte, técnica e habilidade, fatores que o bendito do cigarro de palha não levava em consideração.

Entretido com o manejo da engenhoca de fazer fogo, se vê de repente, cara a cara com o Nania, que vinha descendo a rua em sentido contrário, acossando o pobre do Benzinho, um bode já velho e manco, preso no coice do carrinho de cabrito com seus fueiros cediços, entupido de tantas e tantas dúzias de bambu, que o infeliz arrastava coxeando com dificuldade e sob a tortura do chicotão de Nania.

Sem meias condescendências, Venâncio sai em defesa de Benzinho:

- “Ô camarada, cê num tem dó desse pobre animal?”.

- “Que o que Venâncio...” - resmunga o Nania, com cara de quem não queria muita conversa.

- “Cê num vê o aleijão do bicho, não; num vê o tanto que ele cuxeia e que é uma maldade ficá obrigando esse pobre de trabaiá tanto, e ainda com uma violência desse suporte?! Completa Venâncio indignado.

“...cê tá achando ruim de que? – Perguntou Nania; e completou com toda irreverência:

- Aquela sua muié Quitéria cuxeia mais que esse bode veio, e ocê põe ela prá lavá roupa dentro do corgo todo dia, sem dó ninhuma; e que que cê tem com isso, o bode é meu?!

Venâncio engoliu em seco, deu uma estatelada e desistiu do “pau-da-grosa”. Voltou prá casa, descalçou as botinas cravejadas, atiçou o fogo do fogão, acendeu o cigarro meio pitado que não acendia desde lá fora na rua, encostou a cabeça no batente roliço da porta da cozinha, fixou o olhar na direção do remanso do corguinho e ficou pensando na perna coxa de Quitéria:

“Não é que ela e Benzinho mancavam da perna esquerda!?”.

Publicado em “Fala, filho da mãe!!!”

FALA, FILHO DA MÃE!!!

O chiado melancólico da lenha verde colhida de urgência, cozinhando no braseiro vermelho, expandia, em lúgubre cantilena, um liquido brilhoso e borbulhante, num bailado simétrico, brotado bem do centro do pau-roliço. Afago choroso, sangria de fogo inflamante, a noite se perdia em fagulhas pelos ares escuros do céu de estrelas, num contraste cênico de lânguidas mechas esbranquiçadas que inundavam o espaço restrito até onde a visão penetrava.
Boca de inferno!!!
Tudo vigiado atentamente por João Tatu.
Um contraste entre beleza e medo, dor e aconchego, perfurava o bloco de densa escuridão, na noite fria de inverno.
As caieiras eram construídas de forma engenhosa e a ciência dessa engenhosidade pertencia a poucos, muito poucos, dentre os quais João Tatu era mestre. Todos que ali as construíam passaram pelo seu aprendizado.
Pitada de boa prosa; êita sujeito! Bom de conversa, bom de trato. O costume era o seu viver. Nunca se preocupou com casamento. Vivia só.
A fala mansa, o andar era desvairado e sonso. Tinha cravos na planta dos pés. Fazia um vai-e-vem desengonçado, como se equilibrasse no contrapeso do cigarro de palha; um cilindro grosso, feito sabugo de milho, improvisado no fio do fumo, cortado pela lâmina afiadíssima do canivete corneta, macerado na palma da mão e aconchavado na palha de milho, adredemente preparada.
A alcunha Tatu, alcançava a todos da família. Vinha de pai pra filho desde muitas gerações antes. Entanto, era um cognome tão popular, quanto secreto. Toda a família era conhecida como tal, mas só no cochicho e na distância. A origem? Só Deus, pra dizer! O certo é que todos eram Tatu: João, Vicente, Maria, Carmo, Fiinha, até os animais de estimação costumavam ser identificados com o apodo que os donos da casa carregariam até o túmulo.
Maria se casou com João; um outro João, que não era Tatu e tiveram filhos. Um mancebo, o mais velho, Ducarmo, e outros menores, que geralmente são esquecidos, prevalecendo de costume para cada faixa etária, a sua correspondente contemporânea. Não vem ao caso.
As caieiras eram pontuais e envolvia todos os Tatus. Juntavam-se para o ofício ficado de herança do pai; irmãos tios, sobrinhos, todos.
Sistematicamente os invernos eram marcados pelo espetáculo que se repetia e tomava de enlevo todo o pequeno lugarejo de praça única, perdido no bucolismo de um mundo sem fim. No fulgor da madrugada era possível ouvir o chiado do fogo, dos quatro cantos do lugar; o “estralar” das fagulhas, o estouro de um tijolo ou outro, num “troc” surdo, abafado no ventre do monstro de boca vermelha; cheiro de batata doce assada, e não raro a visão tremulante, vista de reflexo ante a cortina de fogo, dos visitantes que se achegavam ao entorno do fogaréu, para filar o café de rapadura que regava a batata doce no correr da noite e espantar o frio.
Fabricava o melhor “tijolinho” da região! Saia ao gosto do freguês; queimado, requeimado, mais ou menos cru, ou cru de tudo, o famoso e popular adobe. Era o momento de evidência dos Tatus; aqueles “quinze minutos”, como costumam dizer...
Ducarmo pertencia já à terceira geração desses dasipodídeos. Criada sob controle rígido da mãe, Maria, nasceu com proficiente dislalia e sequer lembrava a serenidade do tio mais velho, em sua figura quadrada, calça dependurada na cintura roliça, cinto de fivelão dourado, chapéu palhinha desfiado na aba, e o toco de fumo no canto da boca, e que não quis se casar. Enquanto mansa era a fala, no costume do recosto em frente o coreto da praça, papo macio e descontraído, Ducarmo espelhava Maria. Singela descendência dos Tutus, criada de favor em casa de ricos, dotada de uma dignidade incomparável e de trato específico, esperta; a outra face de João, que era manso e lento.
Uma carada de fuinha, a meninada! Corriam feito “porquinho-da- índia”, escondendo-se pelos cantos da casa, quando aliviados da obrigação de varrer o chão e de levar o café do tio, no labor da olaria improvisada num ponto qualquer da barra do córrego que passava por baixo da casa de Maria, e de Ducarmo também.
A dislalia é uma má formação da articulação de fonemas, dos sons da fala. Não é um problema de ordem neurológica, mas de ordem funcional, referente à forma como estes sons são emitidos. Este som alterado pode se manifestar de diversas formas, havendo distorções, sons muito próximos, mas diferentes do real; omissão, ato em que se deixa de pronunciar algum fonema da palavra ou mesmo a transposição na ordem de apresentação dos fonemas, ou sua substituição por outro de semelhança aparente. Estava ai o mote de risíveis brincadeiras por parte da molecada na rua, e que despertava todo um vicio funcional de fala, marca registrada de toda a família Tatu, sem prejuízo do furor:
- Ô Dutarmo, vem tumê tumida tentada, ta mãe tentou... – gritava o filho da mãe.
- Vai tomá no tu!!! – respondia a coitada, espevitava e com furor.
Queria ver o filho da mãe gritar: TATUUU!!!
Dava morte! Isso ninguém tinha coragem de gritar..
Enquanto isso, a caieira se desmanchava, levando ao fim um dantesco espetáculo, que voltaria no próximo inverno, embora continuasse a dislalia.

(Publicado em “Fala, filho da mãe!!!”)
Tenho certeza que devem estar pensando que eu abandonei esse pedaço aqui. Nada disso. Continuo firme e forte. Como eu disse, escrever é uma arte dolorida. Gosto de ser visto como escritor, mas, sinto uma dor profunda quando estou escrevendo.
Estou preparando o meu novo livro e estou pensando em dar-lhe o nome de Bouquet de Taioba.. Talvez numa homenagem ao meu tio Zizi, que faleceu em 2007, deixando pronto um livro pra ser publicado e que tinha umas tiradas assim. O texto que leva esse nome já está pronto inclusive. Breve breve, eu o disponibilizarei nesse espaço.