terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A Sentinela da Serra ou Um pé de Jequitibá

Era na parte de baixo da rua de cima que montavam o estaleiro. De estrutura simples, uma engenhoca simplória.

No aquém da cerca da casa antiga, o barranco cortado de há muito, a jeito de que sua profundidade medisse a estatura de um homem de pé. Os dois toros de madeira bruta, roliça, sustentando varais alinhados, amarrados com cipó. Tudo organizado dentro da técnica do mestre lenhador. Era uma caixa sem fundos, sem tampa, sem laterais, desenhada no imaginário do expectante e suspensa num espaço vazio. Parecia mesmo é com um cadafalso.

Acobertado pela noite de luzes profanas, Zezinho puxou da rabeca, atarraxou as borboletas cavilhadas do instrumento. Depois de conferir-lhe primorosa afinação, despejou a cantoria. No arranjo da tulha a vizinhança se amontoava e se empolgava, tanto quanto mais se encompridava a noite. Em bicas, o suor descia. A dança, em revoluções coordenadas desregrava o aconchego dos corpos entrelaçados de homens e mulheres ávidos e perdidos pelo deleite da melodia. Suas figuras, refletidas pela chama vermelha do fogo, no centro do terreirão, formavam um espetáculo de sombras que se misturavam num vaivém assimétrico, sem ordem. Zezinho era figura reclamada nos pagodes da redondeza. De cara aberta e sorriso miúdo, ligeireza no passo que se media no compasso da música. O repertório agradava e a voz também.

A Rua do Louco Amor tinha fita de lugar de pouca visitação. Era só impressão. Fita mesmo. Engulho de quem tinha receios de frequentar os casebres de lá. É que lá, repousava o lado alegre do lugar; o puro prazer do povoado. A iluminação emergia tremeluzente de tochas improvisadas em pontas de bambu, com pavios embebidos no azeite fino, fabricado da mamona, arbusto abundante na região, cuidadosamente espalhados pelos cantos do terreiro.

O trio de músicos era incansável e não dava folga. A rabeca tirava o tom. Na marcação, o pandeiro incensurável de Assef com platinelas douradas; a zabumba de Joaquim Parriba, o anão, repetia no contraponto. Num concerto de atitudes e ritmos bem encaixados, ouvia-se o canto, que se perdia mansamente pelas redondezas:

Um dia passei te vendo
Um mês só te namorando
Dez anos por ti sofrendo oh! cabocla
A vida inteira te amando.

Nos pequenos e breves intervalos corria o porongo, cabacinha ou o coité, servido da melhor cachacinha de alambique – Essa é mesmo coração! – falavam entre sorrisos.

Cachaça é coisa de ciência. Durante a destilação, são coletadas três frações: a cabeça, o coração e a cauda, resultado da temperatura de ebulição aplicada no fabrico. O coração se impunha pelo nome. Órgão nobre do corpo humano, aqui também era referência. O equilíbrio. Extremas eram cabeça e cauda, também chamada de óleo fúsel ou caxixi.

Levindo dormia. O catre, improviso de cama construído de rústicas peças de madeira superpostas, semelhante ao estaleiro, rangia sob o peso daquela enorme carcaça humana. A constituição física de Levindo, o fazia destaque no meio das pessoas comuns. Os pés descalçados, sempre, sem apertos, cascos resistentes e intangíveis. Era um homem quadrado. Formava par com Zezinho. Na rabeca não, na rabeca Zezinho era único num raio de muitas léguas. Levindo não tinha ânimo para as noitadas de pagode. Tinha na voz mansa e compassada, uma tonalidade aveludada que lhe dava uma parecença de apascentador de ovelhas. Não tinha vícios. Carregava naquele corpão a docilidade de uma criança.

Quando sentiu o comprimento do raio de sol na parede, percebeu o dia já alto; mais de cinco horas; o trinca-ferro já ciscava o fundo da gaiola. Esfregou os olhos e conferiu que o café já estava coado. Molhou o rosto, engoliu o fubá suado com avidez e pressa, despediu de Fia e foi pro estaleiro. Zezinho já estava lá, firme, à espera do parceiro. O sol espichava no céu enquanto as crianças encarangadas de frio entravam de carreirinha para as salas de aula do Grupo Escolar bem ali na frente. Saudou o rabequista, e ficaram ambos observando o grande jequitibá-rosa deitado sobre os varões do estaleiro. Que belo espécime!

O ritual da serração obedecia critérios previamente determinados, construídos no empirismo da constância. Um puxador, geralmente pessoa de pequena estatura, postado na parte inferior do estaleiro e o serrador, quase sempre de estatura avantajada, ombros largos de halterofilista, posicionado em equilíbrio sobre a peça de madeira. A um canto, a vasilha d'água oferecia a garantia de umidade do ambiente, saturado do pó de madeira.

Levindo e Zezinho formavam dupla de anos no ofício do estaleiro. Naquela manhã, estavam incumbidos de consumir o grande jequitibá-rosa – a árvore sentinela da perigosa serra dos Ferreira. Quem não se lembra dele? Figura portentosa, copa esparramada sobre o que restou de vasta floresta. Visão privilegiada para quem se aventurava nos sacolejos da pequena jardineira de coloração amarelecida, fazendo o trajeto nunca em hora certeira, mas vinha e ia, preguiçosamente, ora subindo com seu gemido rouco, ora descendo na frouxidão do embalo contido no estrondo dos freios inconfiáveis.

A espécie foi comum na região. Com o passar dos anos apenas ele, agora refém da dupla de serradores, pronto, para dentro de alguns dias ser servido num banco qualquer de carpintaria.

No vaivém dos braços, produzia-se o reboar dos dentes em serrilha da grande lâmina de aço, lembrando em tudo o vaivém do arco da rabeca e o som por ela produzido. O bailado de Levindo projetava-se no descampado do grande quintal. Trazia à lembrança o espectro das sombras da noite da tulha, iluminado pelo raio de sol que lhe traíra na madrugada, ao feitio da chama do fogo que iluminara os trejeitos de Zezinho, e seus parceiros, na cantoria do Louco Amor.

Mais que a lembrança do samba, a sonoridade do ato emergia como um gemido de lamento do grande tronco, se espraiando para a distância dali, como que numa denúncia incompreendida pelos passantes que se acocoravam no barranco e davam palpites. O tracejado na madeira como guias definia a linearidade do corte e as exéquias do velho jequitibá. O dia se foi dessa maneira. À noite, possivelmente mais uma rodada de samba, rabeca, porongo e cachaça; ia depender da disposição de Zezinho. Levindo descansaria aquele corpão pesado sobre o catre. Acariciaria as intimidades de Fia, com suas mãos intumescidas do cabo da grande lâmina, provocando-lhe arrepios de prazer.

O jequitibá, com as entranhas reviradas seguiria pra um canto de sala ou um escritório qualquer, talvez um salão de liturgias. No estaleiro, a lembrança de risos, assobios e a borra de farelo da madeira embolorada e perdida no colo do chão. A Serra dos Ferreira, que já não sentia mais o clangor dos freios da jardineirinha amarelecida, não tinha mais sentinela. Uma lacuna invisível, que os olhos dos homens não conseguiam perceber, diminuía o espectro da natureza rala do lugar. A serra ainda está lá, corrompida; poucos os que sentiram a ausência do jequitibá-rosa. Poucos. Longe dali, eviscerada, consumida, a sentinela da serra guardava para sempre a marca dos dentes afiados da serra de aço dos dois serradores, ao som de uma rabeca qualquer.

Wagner M. Martins – Entre Folhas - MG


https://www.youtube.com/watch?v=MBcc00VjCc4

sábado, 24 de novembro de 2012

SOBRE A REELEIÇÃO DE BARACK OBAMA

É coisa de que não gostaria de falar. Não precisava. A mim, particularmente não ocorreria qualquer interesse saber ou acompanhar em minúcias todo o andamento do pleito. Impossível isso, já que a grande mídia desse “meu país” se envolve de forma tal, e durante semanas e mais semanas que antecedem o pleito, que a impressão que me ocorre é de que o resultado dessas eleições influenciarão diretamente nas relações entre brasileiros. Houve um tempo em que a orientação política do mundo ocidental passava necessariamente pelo piscar de olhos que desciam do norte. Os efeitos da guerra fria ecoavam de forma contundente, sobretudo sobre a região da latino-américa, subserviente, submissa e impotente, incapaz de desobedecer. Isso me leva ao meu quintal de infância. Uma vastidão imensurável, coberto de árvores frutíferas cujo domínio administrávamos da porta de nossa cozinha. Atentos, qualquer movimentação estranha suspeita nos levava a perceber que alguém estava invadindo o espaço e carregando nossas mangas. A vigilância se redobrava em ocasiões de frutificação. Contentávamos com a constatação de que os frutos se perdiam no chão, sem qualquer aproveitamento, mas não admitíamos que o vizinho do lado de lá do ribeirão o atravessasse para colher alguns deles. Que proveitos nos davam? Sequer dávamos conta de uma colheita extravagante, misturando diversas modalidades num mesmo recipiente entregues ao apodrecimento sobre a mesa, sem serventia alguma, pois era muita fruta pra poucas bocas. Nesse andar da carruagem, chegamos a um determinado ponto da vida que percebemos que o quintal nem era tão grande assim que as frutas nele produzidas não eram as melhores do mundo e, teriam sido muito melhor aproveitadas se as tivéssemos dividido com nossos vizinhos e amigos. Obama já não controla mais o quintal porque a visão de certos inquilinos da parte baixa do globo chegou a um estágio de crescimento semelhante ao que tivemos quando descobrimos a improcedência do principio que norteava a visão de meu quintal. De um tempo em que se “falássemos” com dirigentes de países como Cuba, China, Rússia causava mal estar e gerava ameaças dos lideres do Norte, passamos a nos relacionar com esses povos, com uma visão divorciada de seus interesses, de seus embargos, principalmente, com uma perspectiva de que os povos são povos e não podem ser medidos pelo seu jeito de pensar politicamente, não se anulam pelo credo e não se impõem pela cor da pele. Infelizmente, grande parte de nossa mídia ainda pensa com a visão retrógada do tempo das muitas mangas. Não perceberam que elas apodreceram, perdidas ao solo. Num certo dia, desses em que o espasmo de inteligência supera o da mediocridade, o país do Norte elegeu um mulato para a presidência, saído de uma descendência completamente desconectada das origens do povo a que veio governar. Reeleito agora, causa o maior frisson em certas cabeças coroadas que lhe dedicaram espaços nunca imanáveis de se dedicar a um nacional. A programação é interrompida e ao fundo os acordes do hino nacional da nação superior. É tétrico. Correspondentes são mobilizados nos quatro cantos do mundo para colher as impressões; comentaristas mudam a impostação da voz. Não há o que fazer. Infelizmente uma visão de subserviência ainda vive sobre ombros e cabeças e sobre esse embalo impactam a informação de nós, reles cidadãos sem discernimento. Do outro lado da notícia, verificamos certo desdém com as coisas ditas por cá. Certo mulato, eleito e reeleito, responsável por avanços significativos, incluídos os de autoestima do povo, começa a sentir de perto o preço de ter contribuído para a supressão dessa subserviência. O vilipêndio, o desdém, o desrespeito e a tentativa de vulgarização são uma constante nesses mesmos espaços dedicados ao mulato da “raça superior”. Não importa o que se tenha acrescido ao país. É preciso que retorne aos trilhos, à vala comum da dependência em todos os níveis e sentidos. Pensam e indicam. Mulatos são diferentes, pude perceber. Os de cá e os de lá. Cresci naquele quintal onde as fronteiras se limitavam pelo prazer da ostentação de poder e domínio. Uma “invasão” de um vizinho em troca de uma fruta fadada ao apodrecimento em nada nos diminuiria, vejo, traria muito mais que um sentimento distante de vizinhança e de competição; traria por certo uma maior proximidade com possibilidades de conhecimentos e interação entre seres de uma mesma espécie. Mas, como ocorre, os mulatos de cá não falam inglês, assim como os vizinhos do lado lá. Isso pesa; e como pesa!

domingo, 18 de março de 2012

Ah, Alteza!


Começa agora, bem de mansinho uma chuva no meu telhado. Sempre que chove me cubro de preocupações; não moro em área de risco, mas sou castigado severamente pelo medo do trovão. Bobagem. Se ouço o trovão é porque o perigo já passou.

Naquela tarde noite chovia. O anoitecer aumentava o risco não só para os que moravam nos morros e nos sítios ribeirinhos. Costumo dizer, sem que ninguém me conteste que as coisas desagradáveis e inusitadas acontecem sempre à noite. É à noite que o gás do fogão acaba; de preferência quando você está na metade do “mexidão”; o dente dói e não tem analgésico, só à noite. À noite é quando os filhos resolvem nascer; alta madrugada! Vai tudo muito bem e de repente:

“Bêêmnhêêê, estourou a bolsa!” - Corre daqui, corre dali, e o jeito é passar o resto da noite no hospital.

Ligaram não sei de onde. A comitiva de Sua Majestade Imperial seria pontual e já estava a caminho. Engoli o lanche e sai no galope. A recepção foi um ato inusitado. Motivação para impor contrafação numa situação política local. Uma pugna despropositada marcada pelo cerceamento de direitos básicos me jogou no colo aquele momento. Algumas linhas foram publicadas nos jornalões da capital. Tá bom, forçou a barra. Recebemos os herdeiros do trono!

Chovia fino. A preparação haveria que ser feita com presteza, embora rapidamente, para se evitar o cometimento de gafes. Há um jeito muito especial de se tratar com membros da realeza, dizia o Augusto Ferreira o anfitrião. Perfilhados no calçamento irregular do paço municipal o minguado destacamento policial repassava o “mise-em-scénes” pra não fazer feio.

D. Bragança espera com o olhar fixo no horizonte como se estivesse alheio ao mundo que lhe rodeava. Augusto desceu rápido, abriu a porta do veículo, curvou-se cerimoniosamente e se fez acompanhar de sua Alteza até onde a meia dúzia de milicianos aguardavam em posição de sentido, desconfiados daquilo tudo.

Ariel, como se estivesse a persignar-se elevou a mão à pala em sinal de respeitosa continência, saudou o herdeiro imperial apresentando-se e se colocando à disposição da comitiva.

D. Bragança estende a mão aos moldes do gestual das monarquias, talvez à espera do beijo do vassalo. Em forma de murmúrio, misto de educação refinada e distanciamento singular da pompa imperial provoca um inusitado desconforto de natureza semântica:

- Obrigado comandante, desejo boa sorte para o senhor e para sua tropa.

- Agradeço, meu príncipe, eu desejo o mesmo para a alteza do senhor também.

Em comitiva, depois de um discurso rebuscado de saudosismo e a expectação de um possível retorno aos lauréis de anteontem, fomos todos à recepção nas dependências do museu federal, nos fartar de bom vinho e vistoso repasto.

Abro os jornais e percebo hoje, no vórtice dessa chuvinha murrinhenta em minha janela, tal qual naquele dia, que toda a imprensa do país está deveras preocupada com a visita do Príncipe Harry às terras de D. Bragança. Policiais paramentados, holofotes e flashes insistentes, iluminam e incendeiam o sorriso amarelo de um inglês genuíno, de rosto vermelho e pele esbranquiçada. Longe de se vislumbrar no rosto do infante, uma beleza encantadora, tal a que se via no rosto gracioso de sua mãe, envolvida pela volúpia do mimetismo entre a frugalidade e a realeza plastificada. Por outro lado, e por sorte dele, não se escreve também em suas faces a estampa rabiscada do pai sempre com ares de quem está chupando limão galego, daqueles miudinhos que tinha no quintal da casa do Tiilton.

Não tenho a menor preocupação de acompanhar os fatos. Sequer me dá interesse em comparar as atitudes do herdeiro da coroa inglesa com as atitudes dos imperiais senhores de Bragança. Percebo hoje que a inusitada visita daquele distante momento chuvoso se repete rotineiramente na cidade, já que firmando-se num sentido sem sentido, germinou por aqui, uma célula de monarquistas emplumados. É coisa que não vinga. Não sai do broto, mas que é hilário é. Não menos hilário que o cordão de populares, moçoilas, crianças e curiosos que rodeiam o terceiro sardento na linha de sucessão do trono de Windsor. Harry subiu morro, Harry jogou bola nas areias cariocas, Harry participou de corrida no aterro, comeu churrasco no Pantanal, posou ao lado de autoridades, foi recebido por escolares de bandeirinha do Reino Unido, fãs de Harry fantasiados de membros da realeza, por fim, como não poderia deixar de ser, Harry foi jogar uma partida de pólo com seus “amigos”. O polo é um esportezinho besta, coisa de ricos, que por preguiça ou comodidade, correm atrás de uma bolinha montados em cavalos de rabo empacotado.

O regime monárquico, a despeito do sonho da Imperial Família de Petrópolis, não foi de todo algo que atraiu muito nosso povo, ainda que em nosso meio existam os reis do futebol, do baião, as rainhas dos baixinhos e da pipoca. Mas, acho até que não sabemos muito bem o significado dessas metáforas não. O que mais me intriga, é que, não é incomum entre nós a expressão: “FULANO NÃO PASSA DE UMA RAINHA DA INGLATERRA!” num significado de que "fulano" não manda coisa nenhuma.

Em verdade, a monarquia inglesa, atualmente é mais o significado de um culto à tradição. Se por um lado, traz essa característica lúdica de emoções, não significa em efeito um governo de fato. Sabe-se que a monarquia inglesa é uma monarquia constitucional parlamentar onde o exercício do poder não está nas mãos do monarca, e tem limites na lei. Em suma a monarquia inglesa é bem um símbolo de poder.

Coisas que acontecem entre nós com importâncias significativas, por vezes não são noticiados. O ex presidente Lula, no climax de sua popularidade, disse que os atos de seu governo com certeza teriam muito mais destaque e repercussão na imprensa alienígena que na doméstica. Há razões para tanto? Falou-se muito mais de Harry, numa semana que do vazamento de óleo nas águas brasileiras.

Que gosto, que razão, que motivos, que mística levam um bando de autoridades, um bando de pessoas do povo, que nem sabem de reis, rainhas e príncipes, a uma insistência exacerbada de uma mídia que zomba do país, que releva questões cruciais ao nada elevado a nada, a ficarem dias e dias com seus espaços todos tomados para definir o sorriso de Harry, discutir a cor da meia de Harry, se enfeitiçar com o beicinho de Harry, e, diagnosticar o cheiro do pum do Harry? Ora, a resposta não está muito longe daquilo que já se sentiu há tempos entre nós e que vem sendo uma pratica aflitiva de nossa elite burguesa e metida a ativa, tão bem evidenciado por Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico, a propósito construída exatamente sobre um confronto futebolístico de nossa seleção com súditos da rainha:

“Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade.”

Jamais foi tão evidente, e eu diria mesmo, espetacular o nosso "viralatismo" quando esse espetáculo de inocuidades toma o nosso dia a dia e transforma em celebridades nada mais que um simples traço de ácido desoxiribonucleico, nada mais que isso.

Vou dormir. Com essa chuvinha manhosa, essa noite chegando, e esse povo brincando de príncipe por aí, pode bem ser que algum Bragança me venha bater à janela, ou mesmo um sapo coaxe sob meu catre, pois, é sempre a noite que essas coisas nos convém.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

domingo, 13 de novembro de 2011

IMPUNIDADE E CORRUPÇÃO - UM MAL QUE SE FABRICA?

Às vezes me entontece a preocupação.

Cheguei no escritório e o primeiro cliente que atendi, buscava uma informação que me obrigou a dedicar grande parcela de minha previsão de tempo para o atendimento, explicando-lhe uma série de implicações para sua conduta delitiva.

Os vários anos de militância nas sendas do Direito Criminal, tem me levado a fazer sérias restrições aos modos como o tema violência, corrupção, justiça, punição, instituições e outros derivados, tem sido tratado nos meios de comunicação.

A fala daquele cliente, infeliz, de olhos pregados nos meus, me fez perceber o quão necessário é preciso mudar a forma de abordagem desses assuntos.

Sobre a mesa, cópias de peças processuais relativas a um mariticídio, cometido mediante paga. Mulher de ímpetos voluptuosos, de libido insaciável, envolve-se com cidadão de escrúpulos duvidosos e concorda em dar cabo do companheiro. A paga teria sido feita com valores oriundos de depósitos acumulados em sua conta de poupança, alimentada pelo próprio infeliz, abatido a tiros à porta de sua casa, quando voltava do trabalho.

Processado o expediente policial, ao desaguar no judiciário, após confissão de autoria, deu-se a prisão da mandante por força de ato preventivo expedido pelo magistrado presidente do processo. Durante todo o andamento do processo, não foi possível a quebra da preventiva, culminando com a condenação da acusada a permanecer reclusa por alguns longos anos.

Àquele cliente da primeira hora, como forma de ilustração, mostrei o caso. Mantendo uma expressão de frieza e convicção, sua reação me causou espanto:

"E o sr. tá se matando na defesa porquê? Ninguém fica preso no Brasil!"

Confesso que não estava acreditando no que ouvia. Resolvi espichar a conversa e o espanto foi ainda maior:

"Nesse país só vai pra cadeia quem não paga pensão alimentícia".

Desde aquele instante, minha observação chamou a atenção para a forma como essas questões tem sido tratadas nos meios de comunicação. Vende-se irresponsavelmente uma impressão que tem cristalizado no ideário das pessoas comuns, uma falsa verdade de que o crime compensa no Brasil. Em minha maratona rotineira, enfrento periodicamente os parlatórios dos presídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde exerço minha advocacia. Nada é mais degradante que a figura do preso impotente, contido por algemas, acossado por vigias, cabeça baixa, de rosto virada para a parede, numa postura de subserviência e dominio. Não são simples alimentantes relapsos que não cumpriram com o mister de mantença de filhos e esposas. Pelo contrário, a maioria, jovens que sequer somam tres décadas de existência; tomados pelo vício implacável do tráfico de drogas, mãos sujas de sangue por bagatelas insignificantes de pedras que corroem o moral da sociedade e alimenta, por outro lado, interesses inexpugnáveis que não tem cara, não tem identidade e não aparecem.

Esses padrões não aparecem nos meios de comunicação, de há muito, não se fala em superlotação, maus tratos, tratamento desumano, falta de respeito a direitos fundamentais, presentes em nossas cadeias. Há casos de presos mantidos dentro de containers de metal, como se estivesem encaixotados como mercadorias.

Não é verdade que não existe punição no Brasil. Não é verdade que o crime compensa. Rebati de pronto e informei ao meu cliente, agora assustado, de que aquela defesa seria sustentada em breve e que a autora do inusitado crime se encontrava presa, desde o início do inquérito.

É latente que existe atualmente entre nós, uma campanha virulenta e perigosa, que tenta, por todos os modos extirpar da Carta Política alguns direitos tão fundamentais quanto inerentes à dignidade da pessoa humana. A doutrina nos ensina tratar-se de uma corrente denominada "Direito Penal do inimigo" onde se imagina que a aplicação do Talião ainda é o método eficaz para sarar todos os males da sociedade. De contra partida, não atentam para o detalhe que a supressão desses direitos, como, o direito ao silêncio, por exemplo, seria o passo mais curto para a institucionalização da tortura, do pau-de-arara, do alicate, do afogamento, e outros meios que remontam ao obscurantismo da idade média. Não imaginaram que a imposição da prisão preventiva, como regra, será capaz de institucionalizar a punição sem defesa, sem a avaliação dos elementos probatórios que compõem o processo. Seria o enfraquecimento do direito sagrado de defesa. Não avaliam, os adeptos dessa doutrina que o principio da presunção de inocência, tem como fundamento básico afastar a possibilidade de perseguições e uma série de consequencias capazes de advir desse principio medieval de que quem é acusado é quem tem o dever de provar sua inocência.

A formação de uma convicção coletiva a respeito do combate a essas garantias, leva-nos à formação de uma sociedade que desacredita de suas leis, das instituições que as produzem e das que as aplicam e executam. Mais que isso, anexam a essa convicção, que somos todos uns santinhos e que, políticos, juizes, advogados, promotores de justiça, sobretudo, são os responsáveis por tudo de ruim que acontece no país. Esquecem-se os arautos dessa mensagem que é no meio dessa população catequizada que vamos encontrar nossos políticos, juizes, advogados, médicos, engenheiros, jornalistas e cidadãos de toda espécie. É um comportamento que ao invés de ajudar na solução dos nossos problemas, contribui para o seu acirramento. Dizem que são omitidas as notícias sobre suicídio, como forma de não estimulá-los, o que alimenta e reforça ainda mais minha preocupação.

Ao abordar a questão da CORRUPÇÃO, na forma como o assunto vem sendo colocado, não vislumbro qualquer possibilidade de avanço, se não observarmos a necessidade de informar aos que tomam conhecimento do assunto que você só terá a figura do CORRUPTO, se do outro lado estiver a figura do CORRUPTOR. É como está na lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação. Mas, é preciso dizer que o CORRUPTOR é aquele que oferece a propina para não ser multado no trânsito; é aquele que aceita que a Nota Fiscal seja emitida em valores a menor do que foi pago pela mercadoria adquirida; é aquele que recebe um real a mais no troco e não informa ao caixa que o troco tá errado; é aquele que se propõe a pagar a um coyote para atravessá-lo nas fronteiras dos Estados Unidos, desanda a mandar dólares pra família, e se vangloria de ter dado tudo certo - claro, tá vindo dinheiro, ninguém questiona! É preciso contar à sociedade que corrupção não tem cor partidária não tem religião e nem sexo. É preciso contar à sociedade que a corrupção pode estar em um palacete de Brasilia, mas pode estar na cozinha de nossas casas, no supermercado da esquina, ou até na igreja que frequentamos, porque não!

Minha saudosa mãe não se cansava de nos dizer em casa que quem tinha coragem de apropriar-se de uma agulha, seria também capaz de roubar um avião(uma referência à grandeza do bem). A imaginar que iremos combater a CORRUPÇÃO apenas reivindicando cadeias e punições, como entende grande parte dos "comentadores" inútil qualquer batalha. Precisamos mudar nossa forma de observar a sociedade. Precisamos, antes de tudo, ser honestos conosco mesmo. Precisamos retomar valores e princípios tão esquecidos em troca de informações alienígenas e vazias que nos chegam de forma fácil. Precisamos exigir respeito e uma maior valoração de nossa cultura e de nossas divergências regionais, estupidamente atropeladas em troca do lucro fácil. Precisamos prestigiar e valorizar nossas instituições; precisamos acreditar que elas serão parceiras fundamentais para o abate de toda forma de concupiscência que venha a surgir no meio social. Precisamos dizer bem alto que acabar com a CORRUPÇAO, com a violência e qualquer forma de impunidade, não basta apenas cruzar as mãos em forma de pomba no peito e fincar vassouras na praça. É preciso tirar de nosso imaginário toda e qualquer forma de aproveitar-se da fraqueza de alguém para satisfazer nossos interesses. É preciso estar atento para o que fazemos no dia a dia. Precisamos dizer alto aos que nos ouvem que dizer a eles que a CORRUPÇÃO é algo que só os políticos cometem, é também uma forma de CORRUPÇÃO dissimulada, e essa é muito mais grave que qualquer outra forma de se corromper.

Nada está perdido, contudo. Um pequeno gesto pode ser o prenúncio de uma grande mudança.

Wagner M. Martins - Advogado e Escritor